26 setembro 2006

Metros autistas

Paris, metro. Adoro andar de metro em Paris. Andar de metro é para mim estar no coração do autismo. Entro e sento-me. Como os outros ou quase todos os outros, também trago um livro ou trago o Le Monde. Um ritual inexorável. Por vezes tento a provocação, sem sucesso, trazendo o L´Hummanité. Parte o metro, pulsa o autismo, sístole e diástole do sempre igual. Com poucas excepções, os passageiros lêem, o jornal, a revista, o livro. Cada passageiro é um mundo fechado, hostil, uma fortaleza perfeita. Ninguém fala, as palavras foram há muito assassinadas. E eu, que venho das ruas calóricas, das ruas das vozes, do bula-bula, do face-a-face permanente. Estudo viagem após viagem a morfologia de todo aquele autismo. A roupa, o corpo, os cabelos, os sapatos, o tipo de livro, de revista. Estudantes, gente de escritório, professores, prostitutas, carteiristas disfarçados, emigrantes, alguns turistas. Reparo que poucas vezes os cabelos foram lavados. Bem, deixemos isso. Regra geral é possível estabelecer relações entre o tipo de leitura, o tipo de vestuário e a forma - estudadamente cansada - dos olhos, como naqueles filmes franceses cheios de drama e de vozes sem destino. Várias vezes procuro saber se se lê mesmo. Há quem realmente leia, frequentemente o último romance do autor consagrado do mês. Mas em expressão que não posso quantificar, não é pouca a gente que não sai da mesma página, aí fica em panne. Entram as pedintes do norte de África, com filhos embrulhados em mantas, minha senhora, meu senhor, estou a sofrer, por favor ajudem-me. Etc. E vão passando no corredor, pardon, pardon, o olhar treinado pela recusa mas sempre lutador, ninguém dá o que quer que seja, olham todos mais demoradamente para as janelas, apertam os atacadores ou intensificam o teatro diário do sono. O homem do acordeão, o saxofonista, o desempregado com um cartaz no peito, pequenos estremeções no autismo que se repetem de viagem em viagem, de carruagem em carruagem. Bem, importa ser honesto: uma ou outra moeda vez que vez. Mais nada. Chego a tocar com os joelhos nas pessoas, tusso demoradamente, ensaio o espirro, faço o parto do diferente, a ver o que sucede. Um ligeiro movimento de enfado, o autismo mantém-se, os olhos bem ancorados no livro, na revista ou no jornal, tudo se resumiu a uma pequena pedra sem glória no charco metro-autista. Ruído. Entram sul-americanos? Argentinos? Espanhóis? Ou são alunos do ensino primário? Mas o que importa isso? Fim de estação, nova estação, sai gente, entra gente, tudo a correr para destinos secretos, o autismo, o silêncio, o saxofonista. Etc. Saio na estação seguinte, nos bancos de espera estão os habituais desempregados dormindo junto das garrafas de vinho vazias. Merde, diz um. E acrescenta outras coisas, que não fixo. Uma vez mais gorada a minha tentativa de berrar a plenos pulmões. Au revoir!

2 comentários:

Marga F. Rosende disse...

Qué rica y bonita descripción del metro, atractivo y repulsivo a la vez. La gente que parece no pasar página...sístole,diástole...
Un beso

Carlos Serra disse...

Muchas gracias. Espero que tu pueda (oh, el verbo...) entender mi portugués y los matices de nuestra vida aquí...Saludos moçambicanos.