18 agosto 2006

Soluções informais: recordando Carlos Cardoso, jornalista assassinado em 2000


O jornalista Carlos Cardoso foi assassinado em 22 Novembro de 2000 quando investigava casos de corrupção em Moçambique. Dois anos antes, em 1998, pedi-lhe um texto para um livro meu. Carlos tinha regra geral pouco tempo para escrever fora do seu Metical. Mas escreveu o texto. Por continuar exemplarmente actual, o faço recordar aqui:
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Soluções informais
Por Carlos Cardoso

Sumário:
1.Introdução
2. Comecemos pela Procuradoria-Geral da República
3. Solução para isto
4. Queixa pública
5. Entremos agora no sistema político
6. Recurso à gestão forma, legítima, justa, sã
7. Um modelo de financiamento institucional
8. A privatização do Estado


1. Introdução
Primeiro, queria dizer que, por ser jornalista, tenho o privilégio de poder arriscar umas asneiras. Os académicos não podem fazer isso. O direito ao erro, para mim, é um método que utilizo para tentar chegar a algum conhecimento. Para mim é extremamente importante. Funciono assim.
Exemplo disto: cresci no jornalismo a aprender que era preciso saber ler e escrever para se ser jornalista. Abandonei esse requisito. Um bom jornalista não tem que saber ler ou escrever, particularmente num país com um índice de analfabetismo superior a 70%. Um jornalista é aquele que sabe recolher factos e transmiti-los fielmente e que sabe, de alguma forma, enquadrar esses factos. Se transmite esses factos pela palavra escrita ou falada, pouco importa. O jornalismo está na comunicação desses factos, e não no meio escolhido para o fazer.
Aprendi isto na prática ao produzir um jornal extremamente pequeno chamado mediaFAX, na companhia de muito pouca gente. Para vender um jornal pequenino, um jornal que não contém aquelas informações úteis para o dia a dia dos leitores - farmácias de serviço, cinemas, necrologia, etc - informações essas que ajudam, e muito, a vender jornais, é preciso que ele tenha qualidade jornalística. Um jornal com muita informação útil daquele género, mesmo que não seja nada de especial jornalisticamente, vende-se. No caso do mediaFAX a sua sobrevivência teria que depender da qualidade do seu material informativo e opinativo. Então, tive que pôr de lado meia dúzia de critérios que aprendi no jornalismo “formal” em que cresci. Um deles foi esse.
Por outras palavras, passei a trabalhar com colegas que estavam muito longe de saber escrever bem, ainda por cima numa língua, a portuguesa, que, na maioria dos casos, era segunda língua. Quando passavam para a escrita, regra geral, complicavam tudo. Enquanto estavam na expressão oral eu, editor, entendia muito melhor o que diziam. Então, na pressão do dia a dia de ter que produzir um diário, foi acontecendo normalmente: A pouco e pouco comecei a funcionar mais e mais como editor do que eles me contavam. O repórter vinha de algum trabalho. Sentava-se ao meu lado e, a pouco e pouco, íamos construindo um artigo. Ele falava, eu escrevia e fazia-lhe perguntas; depois, no fim, punha “recolha por”. Quando aparecia apenas o nome de alguém era porque esse alguém tinha sido o autor completo da peça, sem o método que descrevi.
Foi assim no mediaFAX, e é assim no “metical”. Ao fim de cinco anos e tal nisto, verifico que, talvez por causa da pressão, do cansaço, ou mesmo por causa do excesso de confiança na experiência acumulada, eu, jornalista da velha escola de ter que saber escrever para se trabalhar num jornal, acabei por dar mais erros factuais do que a maioria dos meus colegas. Falo de informações falsas; não propositadas, obviamente, mas falsas.
Em suma, isto corresponde àquilo que escrevi aqui nas notas que preparei: “Soluções informais”. No mediaFAX tive que informalizar o universo formal do jornalismo em que cresci. E devo dizer-vos que estou a gostar dos resultados.
Tendo dito isto, e tendo-vos preparado para a meia dúzia de asneiras que vos quero dizer, ei-las. E oxalá sejam úteis.
Como é que o sector formal se pode informalizar para resolver alguns dos seus problemas de sector formal?

2. Comecemos pela Procuradoria-Geral da República
Temos uma coisa chamada Procuradoria-Geral da República. Está lá ao fundo da Julius Nyerere. Aquilo não serve rigorosamente para nada. Não estou a exagerar. É isso mesmo. Não tem utilidade pública. O dado que reputados juristas me dão é este: A PGR não está presente em mais de 95% dos casos que chegam aos tribunais.
Temos uma procuradoria que não investiga, que não procura. Vejamos alguns casos.
Ainda há três meses a PGR disse que queria investigar três parlamentares. Ela recebeu a autorização da Comissão Permanente da AR no dia 27 de Junho último. Estamos todos à espera.
O Ministro do Plano e Finanças acaba de cometer uma ilegalidade daquelas inesquecíveis, uma ilegalidade ainda por cima profundamente injusta - falo do Diploma de 10 de Junho - e a PGR não faz nada. Provavelmente nem sequer ousa pensar em mexer-se, apesar de a lei orgânica da PGR ser muito clara quanto à obrigação de agir mal tome conhecimento, por qualquer via, de uma ilegalidade.
Portanto, temos um problema. Temos uma instituição que consome recursos do OGE, dinheiros dos contribuintes, e que não serve rigorosamente para nada. Faz promessas de luta contra a corrupção mas nem age nem quer agir. Não há sinal nenhum de que esta PGR vá fazer qualquer coisa, porque para fazer tem que dar a cara. Nunca deu. Não era agora que iria começar. Obviamente, qualquer procurador vos dirá que o problema é também o facto de o Governo, até hoje, não organizar a defesa física dos procuradores e juízes. O compromisso do Governo com a legalidade e com o sistema formal que é suposto sustentá-la é, pois, isento de vigor. O Governo proclama a intenção da legalidade mas, em inúmeros casos, não a pratica. Os canais formais da Justiça, assim, impõem, por necessidade, soluções informais.

3. Solução para isto?
Já o disse e escrevi em várias ocasiões: Sou a favor de se fechar esta PGR, sem eliminar o procurador. Dizem-me juristas amigos que isto é possível pela lei em vigor. Trata-se de o Estado, caso a caso, mandatar qualquer advogado devidamente reconhecido como procurador. Em qualquer caso que seja do interesse do Estado, poder-se legalmente delegar os poderes de procurador em qualquer advogado, e ele, no caso concreto em que está a trabalhar, poder comandar a investigação da Polícia. Numa fase de modelos esgotados como a nossa, há que procurar flexibilizar as coisas de tal maneira que, por exemplo, neste campo, se possa ir construindo uma jurisprudência em torno de práticas destas. Sem a pressa de se atingir uma coerência legislativa absoluta para tudo. Há que informalizar um pouco o edifício formal da Justiça para podermos voltar ao seu propósito: Fazer justiça.
Juristas e empresários, neste momento, estão a discutir a arbitragem, a mediação, a reconciliação. Tenho amigos no sistema judicial. Discutimos esse assunto. Tenho-lhes dito que sou contra a tendência de se tentar fazer um enquadramento todo legal para a arbitragem. Tem de haver margem para erros. Senão a arbitragem não será a procura que tem de ser. Em suma, não se pode fechar a justiça na legalidade, pelo menos neste momento. Aguardemos para ver o que a equipa da arbitragem vai propor. Mas, cá por mim, já um ou dois juízes do sistema deviam ter saído de lá há muito tempo para começarem, cá fora, sem preocupações de enquadramento legal, a fazer arbitragem. Por outras palavras, começar a prática disso e ir corrigindo, e mais tarde preocuparmo-nos com leis para essa actividade. Enfim, escolheram primeiro ver o enquadramento legal para depois passarem à prática - a carroça à frente dos bois. Obviamente quando começar a prática, vai abaixo o edifício legal porque a prática da arbitragem vai impor outras soluções legais fora do actual figurino jurídico.
Ainda na área da Justiça.
Há dias, o Presidente do Tribunal Supremo, o Dr Mangaze, falou numa taxa de corrupção “insignificante” no sistema. Um colega meu, o Marcelo Mosse, fez uma pequena investigação, e chegou à conclusão de que mais de 10% dos juízes ou foram expulsos, ou suspensos, ou qualquer outra coisa do género, devido a práticas de corrupção. Ora, 10% não é uma taxa “insignificante” em nenhuma parte do mundo, particularmente num sistema de Justiça. E há juízes seniores deste país que dizem que é preciso multiplicar por dois porque há uma série de outros casos sob investigação e que só não redundam em sanção passada pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial porque não há dinheiro para acabar as investigações. Depois, se a isso somarmos aqueles casos que não chegam a investigação nenhuma, teremos possivelmente mais uns 10% a 20%. Temos, enfim, um sistema judicial, neste momento, altamente corrompido, numa época histórica em que há muita justiça suspensa por causa da lei. É uma fase difícil. Hoje, em Moçambique, infelizmente, no sector formal a lei está a ser usada cada vez mais pelos “gangsters” para manietarem os sectores honestos e trabalhadores da sociedade.
Portanto, sou a favor de uma atitude muito crítica, muito aberta, pragmática, relativamente às leis. Temos que voltar a colocar a lei ao serviço da justiça. Olho para a arbitragem com um passo na direcção de uma solução, pelo menos para ajudar a descongestionar o sistema na área do litígio comercial. Há que abrir caminho, deixar funcionar, deixar fazer algumas asneiras, abrir campo empresarial no ramo da mediação.
Eu vi nascer isso na África do Sul. Era a geração dos anos 70-73. Começaram as grandes greves, os grandes movimentos sindicais. Muitos problemas começaram a ser resolvidos por métodos de arbitragem. Hoje, já há na África do Sul um considerável aparelho civil de resolução de muitos litígios.
Neste momento, quem faz justiça em Moçambique? Fazem alguma, pouca, este e aquele tribunal. Faz alguma, pouquíssima, o Supremo que tem tido um ou dois gestos de dignidade e que tem conseguido manter alguma relevância da lei na justiça. E é tudo. Em última análise, a corrupção leva à falência a própria ideia de Estado de Direito. As últimas vítimas da corrupção no sector judicial são a própria lei e os advogados que nessa altura deixam de ter emprego porque não são necessários. Não defenderam a legalidade, não batalharam por ela, não lutaram pela sua profissão. Não têm, portanto, por este andar, emprego garantido no futuro. Há algumas boas excepções, mas estão a remar contra a maré.
As pessoas, então, fazem recurso à Liga dos Direitos Humanos, às igrejas, e muito à imprensa. O meu colega que está no Xai Xai, o Carlos Mhula, recebe um, dois casos por semana. São problemas de injustiça do e no Estado, roubos de dinheiro no aparelho de Estado, disputas de terrenos. As pessoas, ao invés de irem ao tribunal, vão ter com ele. Portanto, esperam que a pressão da opinião pública resolva os seus problemas. A opinião pública é, pois, uma outra área informal que ainda não foi utilizada formalmente entre nós. Explico-me.

4. Queixa pública
Lembram-se do caso das 40 toneladas de haxixe? Lembram-se do Ikbal? Sugeri ao advogado dele, o Dr Albano Silva: Não chega a caução do Supremo; vai para uma queixa pública, vai para o anfiteatro da faculdade de Medicina e, naquele ambiente sóbrio, perante personalidades respeitadas do país e perante as câmaras de TV, fazes a tua queixa pública contra os que andaram a utilizar os seus postos de governação para perseguir o teu constituinte. Não é preciso tribunal nenhum. O único e verdadeiro tribunal neste caso é a opinião pública. É ela que tem de ficar elucidada sobre o cortejo de injustiças praticado neste caso. Enquanto não fizeres isso, enquanto não convenceres a opinião pública do que está por detrás de todo este caso, a opinião pública vai pensar que o Ikbal estava metido no assunto e que se safou porque tem dinheiro.
Não foi essa a escolha. E assim, hoje em dia, aqui e acolá, ouço regularmente pessoas a falarem do caso das 40 toneladas como se o seu dono verdadeiro fosse Mahomed Ikbal da Gani. E essa opinião pública, disso convencida, pode, muito bem, um dia, ser usada para um novo assalto à família Gafar.
Mas o que leva as pessoas a procurar a imprensa? Simples: É o facto de ela estar a trabalhar e a ajudar as pessoas a resolver problemas. Se a nossa imprensa não estivesse, de facto, a ajudar a resolver problemas não teria hoje o considerável grau de liberdade de movimentos e de expressão de que já goza. Na ausência de alguma grande utilidade concreta, o pendor para o secretismo na nossa sociedade já teria dado cabo das margens de liberdade de expressão consagradas na Constituição.
Será o recurso ao informal sempre moralmente defensável? Não. Veja-se o que se passa na educação. Uma percentagem enorme dos professores aumenta o seu salário vendendo provas, exames e notas.
O certo é que vivemos numa sociedade que, grosso modo, não se rege por imperativos formalizados, mas por imperativos em fluidez permanente. A economia reflecte isso muito bem. O PIB per capita deste país, dizem os documentos oficiais do banco central e do Banco Mundial, ronda os 90 USD/ano. Pois bem, o Dr Pinto Abreu disse há dias na TVM que o banco central tinha estado envolvido num estudo há uns anos e que o cálculo de per capita real a que chegou estava entre os 170 e os 240 USD. Portanto, estamos perante um universo “oficial” e um outro paralelo. Já para não falar do universo clandestino dentro do informal; as alterações clandestinas de governação que acontecem para beneficiar este ou aquele, como na operação Shoprite, feita nas costas do empresariado nacional, nas costas das leis, dos tribunais, tudo clandestino e a PGR e o Tribunal Administrativo nem esboçaram qualquer gesto de interesse. Enfim, o espelho das estatísticas oficiais não reflecte se calhar nem 30% do verdadeiro rosto da nossa economia.

5. Entremos agora no sistema político
Temos a parte formal do sistema político: Partidos, eleições, parlamento, etc. E temos uma parte informal, aquilo que por vezes chamo de democracia executiva, não partidária ou pós-partidária. Falo do diálogo empresariado-Governo de 95 e 96. Os partidos, os parlamentares, nem por lá apareciam. Estavam à espera que a sociedade fosse ter com eles. Resultado: A nova pauta aduaneira, aprovada em finais de 96, foi feita praticamente em diálogo, por vezes duro, entre o sector formal da economia e uma parte do Governo. Foram dias muito interessantes. Estava ali a nascer um modelo de democracia ajustado às nossas fragilidades económicas e orçamentais. Informalmente, sem grandes preocupações de institucionalização do debate, as empresas iam tendo um debate extremamente rico com o ministro Tomaz Slomão, com a vice-ministra Luísa Diogo, com o Governador do banco central, Adriano Maleiane. Debatia-se e decidia-se. Desse debate até nasceu uma instituição, o Comité Nacional de Facilitação do Comércio e Transportes (CNFCT), e uma outra rejuvenesceu, o Conselho Superior Técnico Aduaneiro (CSTA). Ambas ajudaram a resolver muitos problemas de equilíbrio entre comércio e indústria.
Tragicamente, o Governo autorizou o debate apenas até Novembro do ano passado, e o empresariado ainda não arranjou forças e capacidade de coordenação para o (re)impor. Uma vez aprovada a nova pauta aduaneira, nunca mais se passou à fase seguinte do debate fiscal. Hoje re-instalou-se um ambiente de intensa desconfiança das praças em relação ao Governo, incluindo em relação à equipa económica em cuja independência de juízo as empresas tinham depositado tanta esperança depois das eleições de 94. Hoje, nós nas empresas que pagam impostos, não sabemos se algum membro do Governo representa os nossos interesses. Durante aqueles longos meses do diálogo aduaneiro, apesar de alguns sinais pouco abonatórios quanto à genuinidade da entrega do Governo ao método do debate, continuava-se a acreditar que ali estava uma equipa económica decidida a batalhar pelos interesses da economia formal no tocante ao alargamento da base tributária - essa lenta entrada do informal no formal - acabando-se com os excessos de governação clandestina que tivemos especialmente após a proclamação do PRE em 87.
Chegou Dezembro do ano passado, e nada. Continuavam as empresas à espera da continuação do debate fiscal. Chega Janeiro de 97, Fevereio, Abril. Nada. Chega o 10 de Junho e o ministro Salomão assina aquele despacho hediondo autorizando aquele carnaval de isenções ao Projecto “Propco Moçambique”. O empresariado nacional, os mineiros, as ONGs, as igrejas, todos viram as suas isenções eliminadas a partir de finais de 95, por acordo entre o Governo e o FMI, ficando apenas as isenções dos bens de capital. Mas vem a Shoprite e todos os que abrem loja ali têm direito a “primeiros lotes” isentos de direitos aduaneiros. Hoje, pergunto-me: Porque é que ainda não vieram as reduções do IRT prometidas para muito breve? Porque de algum lado tem de vir o dinheiro para tapar o buraco que as isenções à Shoprite abriram no erário público. Por outras palavras, neste caso o Governo utilizou o recurso ao informal/clandestino para enfraquecer ainda mais o sector formal nacional - e o informal também - em vez de, informalmente, abrir caminho para sinergias nacionais na área do comércio.
Neste momento, portanto, não há debate nenhum. Está todo o mundo meio desentusiasmado. A adrenalina foi metida na gaveta. Estamos todos à espera para ver no que isto vai dar. Pior: Com que moral vai o Governo retomar o debate connosco depois de tirar o pão ao retalho nacional para o dar ao já de si riquíssimo retalho sul-africano?
Mas a coisa mais notável de tudo isto, é isto: Apesar de tudo, até este momento em que falamos, o nosso retalho formal e informal ainda não foi abaixo por causa da Shoprite. Os seus preços continuam a ser competitivos apesar de a Shoprite ter toda a estrutura de apoio que tem. Ou seja, o nosso comércio formal, ao longo de 20 anos de crescimento do sector informal, foi-se adaptando e sobrevivendo no que podia. E ao longo dos anos foi nascendo uma engenharia de equilíbrios que até deram para as finanças, no reino do ministro Magid Osman, aumentarem substancialmente as receitas aduaneiras entre 89 e 91 sem precisarem de ir contratar empresas estrangeiras para gerirem as nossas alfândegas. E o nosso Governo, perante este invejável património de co-existência entre formal e informal, escolhe o empedernido - mas muito lustroso - retalho formal sul-africano que só agora começou a apanhar com o caos de África. Estamos 20 anos à frente da África do Sul em termos de gestão do caos, já nos adaptámos a uma vida marcada por um grau extremo de imprevisibilidade, o futuro dos sul-africanos é o nosso passado, e o nosso Governo escolhe a miragem Shoprite, o recurso ao retalho formal por vias clandestinas.

6. Recurso à gestão formal, legítima, justa, sã
Queria, agora, dar-vos um exemplo contrário vindo de Tomaz Salomão, um caso em que ele utilizou o recurso ao informal de uma forma legítima, sã e benéfica para muita gente. Nos finais de 95, querendo uma quadra festiva sem a inflacção desvairada dos nossos Dezembros, ele chamou a União Geral de Cooperativas e disse-lhes mais ou menos isto: meus amigos, nestas festas o frango no país tem de ser barato. Não pode subir por aí acima como nos anos anteriores. E entregou à UGC o monopólio da importação de frango para o período da quadra festiva mas pôs como condições que a UGC não utilizasse a sua própria rede de retalho para distribuir o frango importado mas sim a restante rede, e que não vendesse aos retalhistas o frango importado a mais do que 29 000 Mt/Kg. A UGC aceitou, o Governo cumpriu e, como todos vocês estão recordados, tivemos um natal e um fim de ano de 95 com frango barato. Era um momento de grande confiança das praças nele e em toda a equipa económica do Governo. E ele, nessa altura, tomou algumas decisões informais bastante acertadas.

7. Um modelo financeiramente insustentável
Passemos agora à municipalização. O parlamento aprovou este ano um pacote legislativo autárquico que nos lega um modelo de municipalismo tipicamente ocidental e de custos insustentáveis.
Quanto custa montar o sistema? Segundo dados fornecidos pelo Governo, as eleições autárquicas nos 33 locais escolhidos vão custar, em números redondos, 20 milhões USD. Ou seja, uns 600 mil USD por município. Há 411 locais passíveis de autarcização no país. Ora, isso dá 250 milhões USD só para montar o sistema. Suponhamos que uns 100 milhões têm de sair da equação porque a maior parte do recenseamento eleitoral fica coberto pelo exercício relativo aos primeiros 33 locais. Sobram 150 milhões USD. Na embaixada portuguesa informaram-me que em Portugal, para um universo de 8.7 milhões de eleitores, as autarquias custam, a realizar, 3 milhões USD. Isto espelha eloquentemente a nossa taxa de incompetitividade.
Agora, quanto custará manter o sistema?
A lei das finanças autárquicas aprovada pelo parlamento, se não estou em erro, permite que o Concelho Municipal (CM) eleito chame a si até 30% das receitas próprias da autarquia para “ajudas de custo”. Vejamos Maputo. Vamos eleger um presidente camarário que terá uns 13 “ministros” - o seu corpo executivo - mais uns 70 autarcas para o parlamento da cidade (o Conselho Municipal). Serão 84 salários mais os tais 30%. Quanto é que isso dá?
Segundo alguns dados fornecidos pelo actual CM no primeiro trimestre deste ano, em 1996 o CM arrecadou, em receitas próprias, 80 milhões de contos, metade do seu orçamento (o resto vem do OGE). 30% disso dá 24 milhões de contos. Primeiro resultado previsível: Muitos dos 11 700 trabalhadores municipais vão deixar de ter salário ou, então, se a opção não for o despedimento, haverá uma deterioração ainda mais acentuada da qualidade dos serviços camarários por falta de dinheiro para os sustentar, ou, 3ª hipótese, haverá uma pressão fiscal cada vez maior sobre as empresas, acentuando o ambiente de sufoco de tesouraria em que funcionam. Por outras palavras, um dos resultados deste modelo de municipalismo será o aumento do desemprego e da criminalidade, ou uma aceleração da descapitalização empresarial por via fiscal.
Agora, vejamos quanto custa o sistema político no seu todo. São os tais 150 milhões USD municipais, mais os 100 milhões USD que custaram as eleições de 1994, mais uns 5 milhões USD/ano para manter a Assembleia da República, mais, digamos, uns 20 milhões USD/ano para manter todos os locais autarcizados. Tudo somado dá 275 milhões, a dividir por cinco, igual a 55 milhões USD/ano. Por outras palavras, o sistema político custa-nos um quarto das nossas exportações de mercadorias e passa a ser o principal custo já que, por ano, em serviço da dívida, pagamos uns 50 milhões USD. Para um país pobre como o nosso, que devia estar a investir todas as poupanças na criação de mais capacidades produtivas, este tipo de democracia representativa é uma receita para o desastre.
Dir-me-ão: Os dinheiros para as autarquias não são empréstimo, são donativo e, por isso não temos que pagar. É mentira. Pagamos. Pagamos tudo. Em primeiro lugar, pagamos com perda de soberania. E depois pagamos através de custos de manutenção que não serão sustentados pelos doadores mas sim directamente por nós. E pagamos com a pilhagem a que o nosso país é submetido por sermos financeiramente demasiado frágeis - e corrompidos - para nos defendermos.
Sou, pois, contra um sistema político de economia desenvolvida aplicado automaticamente a um país de economia sub-desenvolvida. Não temos dinheiro para isso. Prefiro, de longe, um período longo de erros nossos, cometidos por nós, para aprendermos. O Banco Mundial recusa sistematicamente autorizar Moçambique a fazer os seus próprios erros e, assim, estamos sempre a apanhar com os erros deles. Acertam em muito pouco. A vice-ministra Luísa Diogo disse no último sábado, no “Linha Directa”, que a taxa de falhanço do Banco Mundial nos seus projectos atingia, nalguns casos, mais de 50%. Nenhum banco comercial poderia sobreviver com uma taxa de falhanço dessas.
Pois bem, nisto de sistema político, sou a favor, uma vez mais, de uma solução informal. Sou a favor de algo que já foi feito neste país com sucesso retumbante pela FRELIMO quando era frente de libertação: Aprendeu a fazer, fazendo. Ganhou-se a luta armada assim e, nos primeiros cinco, seis anos, da nossa independência, com esse método foi-se corrigindo muito do que estava mal na opção socialista - como a privatização da rede comercial rural a partir de 78/79. E foi durante esse curto período que se atingiu o mais elevado grau de esperança no nosso país. Por um breve instante pareceu possível milhões de pobres, eventualmente, deixarem de o ser. Por pressão militar externa e por processos de corrupção internos esse processo foi interrompido e hoje estamos amarrados a mecanismos formais de governação que, no último ano, até já abandonaram o mais rudimentar dos requisitos de uma democracia: O debate, a consulta detalhada, o diálogo institucionalizado com as praças.
Por esta razão, no tocante à municipalização sou a favor de muita acção e poucas leis, e de uma grande variedade de modelos. Deixemos que cada município vá escolhendo o modelo de governação municipal que melhor lhe convem. Em Maputo já elegemos duas assembleias de cidade e nenhuma delas jamais esboçou qualquer sinal de relevância. Não temos razão nenhuma para concluir que a próxima será mais relevante. Temos apenas a garantia de que será imensamente mais cara.
Em Maputo, que é onde vivo, parece-me ser muito mais útil e racional eleger apenas um presidente camarário que tenha a liberdade de escolher a sua equipa de trabalho, e que, depois, monte um sistema de eleição de um presidente por cada bairro, e os 50 chefes de bairro mais o presidente camarário formam o CM. E chega. A eleição do presidente camarário e dos presidentes de bairro estabelece a dimensão democrática do sistema. Ou seja, deixam de ser escolhidos por meios não eleitorais (e, já que estamos com a mão no assunto, sou a favor de, nas eleições autárquicas, aqueles cidadãos que não precisem de votar secretamente om possam fazer de mão no ar ou por qualquer outro método mais rápido e mais barato).
Por estes métodos, temos uma hipótese muito melhor de eleger pessoas e não partidos, e assim garantimos uma taxa de erro bastante mais baixa do que no tiro no escuro que é quase sempre a votação em partidos.
Quanto ao acto eleitoral, ele pode dar dinheiro em vez de custar dinheiro. Creio que muito poucos residentes de Maputo rejeitariam pagar 2 ou 3 mil Mt no momento da votação. Uns bairros poderiam pagar mais do que outros. E, para conduzir o acto eleitoral, poderíamos ter as igrejas que, hoje, incutem muito mais confiança nos cidadãos do que os partidos políticos. Não estou a dizer que as igrejas estão isentas de imoralidade política. Mas a sua frequência seria insignificante comparado com o que pode acontecer com partidos. E não é só igrejas. Trata-se, no fundo, de mobilizar o concurso das instituições e indivíduos ainda honestos da nossa sociedade para podermos prescindir do caríssimo policiamento eleitoral feito pelos chamados “observadores internacionais” e, no processo, recuperarmos a nossa postura de não precisarmos de ninguém de fora que nos venha dizer se nos portámos bem.
Para se fazer tudo isto, obviamente, é preciso suspender o pacote legislativo autárquico. E isso, por seu turno, só se deve fazer se houver um forte consenso dos munícipes em relação a um modelo alternativo. Caso não haja tal consenso, obviamente não devemos destruir o que a AR aprovou. Mas insisto que devemos começar a lutar por uma alternativa financeiramente viável (idem para 99). A meu ver, a AR devia aprovar duas ou três coisas básicas para os municípios, arranjar uma instituição para arbitragem em litígios municipais e deixar um campo muito amplo para o primeiro presidente eleito ir adaptando o regime municipal às realidades do município, especialmente no tocante a impostos. Como as coisas estão, o presidente eleito, se for pessoa honesta e trabalhadora, vai estar amarrado a um conjunto de leis que o forçarão a tentar enfiar a realidade no modelo aprovado pela AR.
Vejamos a realidade. Os vendedores do Xipamanine pagam diariamente à câmara uns 10 a 12 mil contos em taxas. Mas quando aquelas 150 barracas arderam não houve nem um Mt para os ajudar a reconstruir as suas vidas. Isto significa que estamos num período de gestão camarária altamente corrompida. E não é por falta de leis. Leis é o que há mais. É por falta de gente honesta e trabalhadora a conduzir os destinos camarários. Pois bem, só podemos dar o salto para esse tipo de gestão se as pessoas honestas e trabalhadoras que não se importam de voltar a servir o Bem Comum tiverem campo para agir. Daí a informalização de que falo.
Se não arranjarmos uma solução no plano institucional, é óbvio que, com o aumento da degradação do município, os munícipes, mais cedo ou mais tarde, vão ser empurrados para uma gestão completamente paralela ao CM. Por exemplo, o jornal em que trabalho está no bairro da Polana. Se as coisas chegarem a níveis insustentáveis de degradação não duvidarei em juntar-me a um processo popular de bairro do qual saia uma pessoa bem paga pelo bairro encarregue de tomar conta das coisas, digam o que disserem os funcionários camarários, os parlamentares e os “peritos” da democracia. Trata-se de, pela via informal, arranjar soluções para os problemas criados ou não resolvidos pelas estruturas formais do poder camarário. Ao longo da História, as sociedades foram sempre empurradas para situações dessas durante as fases de falência dos modelos.

8. A privatização do Estado
Hoje, em Moçambique, o Estado está em processo acelerado de privatização por dentro. Centenas dos seus funcionários, com salários miseráveis, cobram taxas paralelas, vendem exames e notas de fim de ano, exigem somas avultadas para fazer andar a papelada, etc. Por outras palavras, o aparelho de Estado - salvo honrosas excepções - já não representa o Bem Comum. Fatias cada vez maiores deste aparelho são clandestinas nos seus actos e privadas nos seus objectivos. O Bem Comum, hoje, um pouco em todo o mundo, está melhor representado pela imprensa, por igrejas, ONGs, clubes desportivos, em suma, pela chamada sociedade civil. Aqui e um pouco por todo o mundo (a transição é global). Até no Benfica, essa capital da frescura financeira e futebolística dos anos 60, há uma profunda crise económica e de valores.
Ora bem, em períodos de ordem a mais, as pessoas começam a sentir-se claustrofóbicas e, mais cedo ou mais tarde, estoiram. Não aguentam a ditadura da ordem a mais. Idem com a desordem. Também tem dimensões de ditadura. É nisso que hoje estamos, em grande medida, como humanidade. Uma enorme e destrutiva desordem que tudo arrasa. Por isso, começa um desejo profundo de alguma ordem, de um regresso de taxas elevadas de previsibilidade. Os valores que ontem eram conservadores - ter uma escola para os miúdos, um hospital onde ser tratado humanamente, poder andar na rua sem ser assaltado, ter alguma segurança financeira para a velhice - tudo isto eram valores conservadores. Eu próprio pertenço a uma geração que tratou todos esses valores como “quadrados”. A desordem de hoje tratou de elevá-los a valores quase revolucionários, capazes de unir as mafias deste mundo contra os pequenos exércitos da honestidade e do trabalho árduo como única fonte legítima de enriquecimento.
É nesta transição que é preferível gastar algum dinheiro, metê-lo sem receio no “luxo” de uma procura nacional, com o correspondente grau de informalidade nas decisões, do que estarmos a importar modelos formais de fora que só nos levam a ficar dependentes deles. Vejam o que se passa nas alfândegas. Quantos anos andou a opinião pública a dizer ao Governo e ao Banco Mundial que os salários do pessoal das alfândegas tinha que aumentar. Os técnicos nas fronteiras tinham que ter acomodação decente. Etc. Não podia ser, diziam eles. Não havia dinheiro. Não havia dinheiro para testarmos um modelo nacional, feito por nós para o período pos-guerra, mas já temos dinheiro para pagar 19 milhões USD/ano a duas empresas de controlo aduaneiro estrangeiras. É absurdo. Ainda por cima, entre 89 e 91, em plena guerra, e com a prata da casa, o ministro Magid Osman aumentou substancialmente as receitas aduaneiras. Estas coisas dão-nos a volta ao estômago, estarmos a entregar o coração aduaneiro do Estado a empresas estrangeiras quando está plenamente ao nosso alcance fazer quase tudo sem necessidade de irmos lá fora.
Enfim, passemos à ponta final desta improvisada introdução ao tema.
Este ano, a propósito de arranjar dinheiro para cobrir os prejuizos causados pela liberalização às fábricas de cajú, ocorreu-nos sugerir à Suécia que metesse 7 milhões USD nessas fábricas, ajudando-as a recapitalizar depois do golpe do Banco Mundial, e, em troca, as empresas construiriam uma série de benefícios para os seus trabalhadores e comunidades em que estão inseridas, como escolas primárias para os filhos dos trabalhadores, subsídios na compra de novas árvores, etc. Tais benefícios, provavelmente, custariam muito mais a construir através do actual modelo de cooperação com um doador com a Suécia. Seria uma poupança para os contribuintes suecos. Pareceu-nos, e continua a parecer-nos, uma área informal de utilização dos dinheiros da ajuda externa que devia ser seriamente explorada. Desconhecemos se a ideia deixou marcas do outro lado. Ouvimos dizer que a associação das indústrias da Suécia lhe achou utilidade e anda a ruminar no assunto. A ver vamos. Mas aí estaria, sem dúvida, uma forma de cooperação não geradora de dependência. Tratava-se de, informalmente, sem burocracias, com percepção política ajustada aos momentos difíceis que atravessamos, e num moldelo assente em resultados, colocar o dinheiro dos contribuintes suecos a um nível de aproveitamento multifacetado, via sector produtivo. Era uma solução informal para um objectivo formal: Consolidar o sector formal da indústria para dele continuarmos a extrair todos os seus ímpetos de estabilização, desde mão de obra fixa aos impostos para o Estado.
O mesmo raciocínio têm-no pessoas tão diferentes como o eng. Lemos Brito e o eng. Amad Momad. Vindos de berços completamente diferentes, ambos dizem ao Governo: Façam um ROCS com mais pessoal de cá, com mais cimento e menos asfalto (senão para que é que andámos a dar à CIMPOR a ilusão de uma tonelagem idêntica à de 73?), utilizem algum do dinheiro para financiar a recapitalização de empresas nacionais, ressuscitem o LEM. Tudo isto são áreas que têm de ter algum grau de experimentação. O dinheiro gasto aí será sempre mais útil do que o dinheiro que continua a ir para fora, para consultores, à razão de 30% do que o mundo nos entrega anualmente para fazer andar a máquina da nossa economia. Estamos a endividar-nos para enriquecer os outros. Não faz sentido nenhum.
E o exemplo mais eloquente de todo este apelo a uma fase de informalidade investigativa aí está, no prolongamento da Av Vladimir Lenine, até ao Xiquelene. Foi feita de tijolo-cimento, com muita mão de obra local, com cimento local, com equipamentos que já cá estavam e conhecimentos que sempre foram locais. Segundo o representante do Banco Mundial, Roberto Chavez, que batalhou por ela contra colegas dele no Banco e até contra a ala pro-asfalto do Governo, e que queria uma avenida mais exposta à elite como a Mao Tse Tung, segundo ele, aquela avenida ficou 10% mais cara do que na opção asfalto. Mas nos 6 anos que se seguiram, portanto, até hoje, não se gastou nem um Mt, nem um dolar, em manutenção. Na opção asfalto, mais barata no papel, gastar-se-iam menos 10%. Mas na opção asfalto, onde ela foi aplicada, o dinheiro foi quase todo para fora e os custos de manutenção são altíssimos. Na opção cimento (obviamente estou a falar exclusivamente de estradas urbanas) quase todo o dinheiro ficaria cá dentro e os custos de manutenção são extremamente baixos. E em 4 ou 5 anos disto, as empresas reacordadas do ramo passariam, com a prática, a custos de execução ainda mais baixos que os da opção asfalto.
No Peru, lá para o final dos anos 80, um ex-governador do banco central do país, de nome Hernando de Soto, meteu-se no informal, arranjou-lhe impostos formais mais baixos do que os que pagava no paralelo. Em cinco anos entraram no sector formal mais de 200 mil empresas e 1.5 biliões USD/ano no OGE. Diz quem conhece o Perú que por causa disto Fujimoriu ganhou as eleições. E ainda lá está.
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In Serra, Carlos, Estigmatizar e desqualificar/Casos, análises, encontros. Maputo: Livraria Universitária, 1998, pp. 27-44.

1 comentário:

Anónimo disse...

Interresante o texto. O Carlos Cardoso era um visionário. Esse texto continua bastante actual. Vou recomendar aos jornalistas do Canal de Moçambique a le-lo.
Um abraço

Luís Nhachote